sábado, 23 de janeiro de 2010

Terceira Parte.


De qualquer das formas, passara-lhe a vontade da carta quando, certo dia, resolvera “armar-se aos cucos” e pegara no carro da mãe. Passavam férias no Alentejo, em casa dos avós. Serpa. Vila, não aldeia. Muralhas envolvendo-a. O castelo ao cimo. Casinha pequena e mais acolhedora do que alguma em que já estivera. Paredes brancas, cal tão tipicamente alentejana. Contornos azuis. De azul se pintaram os montes. Cheiro a compota pela manhã, a especiarias dia dentro, a chá ao cair da noite. Mãe e Avó: salinha de estar. Pernas cobertas com a já tão antiga manta, apesar do calor que se fazia sentir. Televisão apagada. Vozes que se encontravam de tempos a tempos. Avô e Dinis: caminhada habitual. Montes, vales. Exploração de um espaço que se havia despido diante deles e, daquela forma, só para eles, desde sempre. Lia no banquinho de pedra da entrada. Que livro era? Cem anos de solidão? Não, O Amor nos Tempos de Cólera. Inventara, desde que a mãe lho dera, mil e uma desculpas para não lê-lo. Teimosia juvenil. Apaixonara-se perdidamente por ele, anos depois. Não era costume passarem carros na ruela em frente à Casa. Naquele dia, era certamente a mão incerta a encarregue da história. Fechou o livro e deixou-se a fitar o carro estacionado junto ao poço. Pensou que, se pudesse falar, aquele carro era bem capaz de se tornar no seu melhor amigo. Aproximou-se. Sorriu-lhe como se este pudesse compreendê-la. Passou os dedos pelo pó de terra batida e falou-lhe. Imaginou que lhe respondia. Mal sabia ainda que, momentos depois, terminaria pela sua própria mão… Rectificando: pelo seu próprio pé, com aquela bonita mas efémera amizade fictícia. A mãe deixara a chave na ignição. Confiança nas gentes do Alentejo ou a distracção que tão bem lhe conhecia? Pouco importava, naquela hora. Abriu a porta e sentou-se no lugar do condutor. Julgava agora não ter tido intenção de conduzir o carro no momento em que se sentou ao volante. Apenas se sentou a imaginar-se fazê-lo. A caminho do Algarve ou do Norte, de França ou de Espanha. Sem se aperceber, rodou a chave na ignição e o carro pôs-se a trabalhar. Tentou lembrar-se do que a mãe lhe ensinara acerca dos pedais: embraiagem, acelerador, travão. Ou seria antes embraiagem, travão, acelerador? Troca de pedais. Erro crasso. Antes que pudesse ter consciência do que fazia já o carro e a Oliveira se beijavam. Fim da amizade.


Continua...

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Wrong button, my mistake.
    Os carros e as suas intensas paixões com árvores e valas. Não é assim?
    Amanhã sai a quarta parte? :3

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