domingo, 16 de maio de 2010

Sétima Parte.


Sorriu com as cócegas que a possibilidade de tal acontecimento lhe faziam na imaginação. O rapaz dos calções azuis e pião na mão – quem sabe se não o menino referido no início da narrativa – julgou que lhe sorria a ele e retribui. Doce menino. Calhava a ter-se cruzado com a menina do balão e esta não lhe teria, com certeza, retribuído o sorriso. Para onde seria que se dirigiam? Escola? Emprego? Simples local de passeio? E, mais que na cabeça, que levariam na alma? Iria também ela vazia? Que sentiria o senhor vendedor de quadros que há anos só estrangeiros, de tempos a tempos, compravam? E a senhora que se arrastava pela calçada a pedir esmola com o filho leproso pelo braço, que mão não tinha, e de quem todos – incluindo ela, que nesse ponto de ninguém diferia - se afastavam? Que sentiria o rapaz perplexo que, pela conversa ao telefone, acabara de ficar pendurado? E a menina que, sentada no carrinho vermelho, mais de um ano não tinha, talvez menos, fitava a mãe sem compreender porque é que esta não respondia da forma que desejava ao seu choro? E ela? Que sentia ela própria? Saberia? Não lhe apetecia saber. Era mais fácil tentar adivinhar os sentimentos alheios. Mais confortável, também. Tão cedo e já tanta sensação!



(Apesar de parecer uma estória parada, está a andar. Uns dias com mais inspiração, outros com menos, mas vai indo. Obrigada a quem sei que tem seguido. Obrigada aos que eventualmente também seguirão sem que o saiba.)


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terça-feira, 6 de abril de 2010

Sexta Parte.

Oito horas e trinta minutos. Transeuntes apressados por todos os lados. Ruído sem cessar. A multidão acordada e em êxtase. Se havia coisa de que, sem dúvida, gostava era de caminhar por entre aquele diário aglomerar de pessoas e sentir que era envolvida por uma imensidão de pensamentos, sentires e agires diferentes. Gostava de postar-se a adivinhar o que diriam para si ao caminhar. Falariam sequer consigo mesmos? Seriam capazes de se confrontar a si mesmos e ter, ainda assim, força para se moverem em direcção aos seus distintos destinos? Talvez caminhassem sempre em silêncio. Mas não era, também essa, uma ideia tão absolutamente aterradora? Seria possível que existissem mergulhados nos seus próprios silêncios? E agora que pensa…e ela? Como é que costumava caminhar? Em silêncio? Em conversa consigo mesma? Costuma cantarolar para dentro ou mesmo, em dias em que - por qualquer lapso da mão escritora desse dia - deixava em casa o terror de ser ouvida pela multidão, de forma audível. Não tresloucada e esquecida daquilo que ditam as regras acerca da sanidade mental, mas de forma audível. Será que cantarolavam para si os transeuntes daquela manhã de Lisboa viva? Imaginou que, durante breves minutos concedidos por qualquer divindade bem-disposta, toda aquela multidão cantarolaria e ela seria capaz de ouvir. Iron Maiden, o jovem rockeiro que se aproximava; Rodrigo Leão, a rapariga de estilo alternativo que atravessava agora a estrada para o outro lado; Pink Floyd, o senhor das tatuagens com ar de quem crescera a ouvir “We don’t need no education, We don’t need no thought control”; Xutos e Pontapés, a rapariga da Faculdade de Artes que se sabia sê-lo por estar devidamente trajada; Tony Carreira, a Dona Elvira que, com tanta gente que passa, talvez esteja aí algures também. Se não estiver, pelo menos já faz parte da Estória.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Quinta Parte.


Ainda parada em frente ao roupeiro, voltara a fitá-lo para decidir o que vestir. Apesar de cedo, tinha acordado bem-disposta e apetecia-lhe caminhar. Destino: o já sabido, Baixa Pombalina. Decidiu-se por um Jeans simples e até um pouco gastos e por um daqueles Tops que comprava mais porque sim do que propriamente por gostar deles, meia curta e sapatinho prático da Quechua. A mochila vermelha que a acompanhava há anos e que levaria dentro o Livro em Branco, uma caneta, o Livro do Desassossego – que finalmente se decidira a “vasculhar” e a máquina fotográfica. Pegara, ainda antes de descer as escadas, no telemóvel e fizera a chamada matinal habitual: desde sempre que, antes de sair de casa, fosse para onde fosse e a que horas fosse, ligava à Mãe para saber como fora a sua noite de sono e como estavam as coisas por casa. Quando não a apanhava, como tinha sido o caso dessa manhã, deixava-lhe uma mensagem à qual sabia que esta responderia logo que possível. Estavam, assim, sempre em contacto. Descera as escadas, comera apressadamente uma das Pêras trazidas do Monte dos Avós, colocara outra distraidamente no bolso do casaco que entretanto resolvera vestir, dada a hora matutina a que sairia de casa e, deixando um bilhetinho escrito a Alexandra para que esta não se preocupasse ao acordar, saiu de mansinho.



Continua...

Quarta Parte.

Costas coladas ao banco. Pânico a percorrer-lhe o corpo. Tal não fora a força com que colocara o pé naquilo que sabia agora ser o acelerador (embraiagem, travão, acelerador), que o baque havia sido ensurdecedor. Vinham já Mãe e Avó esbaforidas. A Avó tentando libertar-se da manta que ainda se lhe agarrava ao corpo, a Mãe mostrando
às mãos o caminho para a cabeça e abrindo mais os olhos à medida que se aproximava dos estragos produzidos. Costas ainda coladas ao banco. Suor frio. Suor quente. Olhos fixos na Oliveira. Mãos fixas no volante. Recordava-se vagamente da Mãe ter-lhe gritado inúmeras vezes que lhe abrisse a porta. Algures durante a viagem imaginária a nenhures, trancara o carro. A Avó batia insistentemente no vidro a seu lado, pedindo-lhe que lhe desse algum sinal de se encontrar bem. Depois daquilo que lhe parecera uma eternidade mas que poderiam ter sido apenas escassos minutos, destrancara a porta do carro. A Mãe gritava qualquer coisa como “Onde é que estavas com a cabeça?” e “Quem é que vai pagar os estragos?”, a Avó incitava-a a sair do carro para poder examiná-la da cabeça aos pés. Levaram-na de braçado para dentro de casa e a Avó preparara-lhe um chá. Passara os dias seguintes ao incidente em silêncio e, desde então, nunca mais voltara a falar à Mãe em tirar a carta. Mais tarde, quando o fizera finalmente, tinha-se safado à primeira sem qualquer tipo de problema.
Continua...

sábado, 23 de janeiro de 2010

Terceira Parte.


De qualquer das formas, passara-lhe a vontade da carta quando, certo dia, resolvera “armar-se aos cucos” e pegara no carro da mãe. Passavam férias no Alentejo, em casa dos avós. Serpa. Vila, não aldeia. Muralhas envolvendo-a. O castelo ao cimo. Casinha pequena e mais acolhedora do que alguma em que já estivera. Paredes brancas, cal tão tipicamente alentejana. Contornos azuis. De azul se pintaram os montes. Cheiro a compota pela manhã, a especiarias dia dentro, a chá ao cair da noite. Mãe e Avó: salinha de estar. Pernas cobertas com a já tão antiga manta, apesar do calor que se fazia sentir. Televisão apagada. Vozes que se encontravam de tempos a tempos. Avô e Dinis: caminhada habitual. Montes, vales. Exploração de um espaço que se havia despido diante deles e, daquela forma, só para eles, desde sempre. Lia no banquinho de pedra da entrada. Que livro era? Cem anos de solidão? Não, O Amor nos Tempos de Cólera. Inventara, desde que a mãe lho dera, mil e uma desculpas para não lê-lo. Teimosia juvenil. Apaixonara-se perdidamente por ele, anos depois. Não era costume passarem carros na ruela em frente à Casa. Naquele dia, era certamente a mão incerta a encarregue da história. Fechou o livro e deixou-se a fitar o carro estacionado junto ao poço. Pensou que, se pudesse falar, aquele carro era bem capaz de se tornar no seu melhor amigo. Aproximou-se. Sorriu-lhe como se este pudesse compreendê-la. Passou os dedos pelo pó de terra batida e falou-lhe. Imaginou que lhe respondia. Mal sabia ainda que, momentos depois, terminaria pela sua própria mão… Rectificando: pelo seu próprio pé, com aquela bonita mas efémera amizade fictícia. A mãe deixara a chave na ignição. Confiança nas gentes do Alentejo ou a distracção que tão bem lhe conhecia? Pouco importava, naquela hora. Abriu a porta e sentou-se no lugar do condutor. Julgava agora não ter tido intenção de conduzir o carro no momento em que se sentou ao volante. Apenas se sentou a imaginar-se fazê-lo. A caminho do Algarve ou do Norte, de França ou de Espanha. Sem se aperceber, rodou a chave na ignição e o carro pôs-se a trabalhar. Tentou lembrar-se do que a mãe lhe ensinara acerca dos pedais: embraiagem, acelerador, travão. Ou seria antes embraiagem, travão, acelerador? Troca de pedais. Erro crasso. Antes que pudesse ter consciência do que fazia já o carro e a Oliveira se beijavam. Fim da amizade.


Continua...

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Segunda Parte.

Voltou para dentro, deixando aberta aquela única fonte de ar puro, ainda que estático. Deteve-se em frente ao grande espelho na parede em que encostava a cama. Acordara como o dia que nascia lá fora: reluzente, tranquila, sorridente. O rosto apresentando, claramente, indícios de uma noite bem dormida. Deteve-se depois em frente do pequeno roupeiro que dividia com Alexandra há já quase cinco anos e onde guardava toda a sua indumentária. Lembrava-se de tê-lo recheado de novo – não deixara nem uma peça de roupa antiga – com os primeiros ordenados, no primeiro ano em trabalhara. Sentira-se como que dona de uma parte importante do mundo. De um só seu, claro está. Chegara depois a arrepender-se, amaldiçoando-se por não ter deixado de parte dinheiro suficiente que lhe permitisse tirar a carta. Recordou-se dos maus bocados que passara no primeiro ano de Faculdade, quando todos tiravam a carta e falavam dos carros novos e dos passeios que davam. Tão imatura era, ainda. Não sabia nessa altura que pouco importa cedo ou tarde, que pouco importam esses bens materiais, luxos a que nos habituamos para mais tarde termos de nos desabituar e um dia, talvez – e sublinhe-se talvez – voltarmos então, de novo, a habituar-nos. Luxos a que muitos têm a sorte de aceder por parte dos pais (e é quando saem debaixo das suas asas que a eles têm de se desabituar) e que outros nunca chegam - por parte nenhuma - a conhecer.


Continua...

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Primeira Parte.


Manhã de Junho, dia por definir. Sete horas e quarenta e cinco minutos. Céu limpo. Previsão de sol quente e de que este viesse sem o vento que nos últimos dias se tinha deixado passear pela cidade e que havia feito uma infinidade de papéis fugir das mãos de uma jovem rapariga e aterrar estrategicamente aos pés de um jovem rapaz, obrigando-os a curvar-se em momento também ele estratégico e fazendo-os levantar o rosto no momento exacto em que os seus olhos se encontrassem. Vento que tinha também feito voar para longe o balão de pequena criança, que não tanto pela perda do objecto em si, mas mais pela infelicidade que lhe causava não poder ostentá-lo num fio preso ao seu pequeno braço, ficara de orgulho ferido, fingimento de coração partido e lágrimas entregues à necessidade de nova compra. Vento esse que tinha também feito rodopiar o pião de certo menino maior número de vezes do que aquelas que teria rodopiado em dia sem corrente ventosa, ou caso o tivesse feito girar no sentido contrário. Vento, portanto, umas vezes bem-vindo, outras convidado indesejado. Lisboa. Capital histórica; conhecida e com tanto ainda por descobrir.


Se lhe perguntassem o que fazia em plena Baixa Pombalina àquela hora, não saberia responder. Acordara pouco depois das seis horas de uma não ainda manhã. Fazia a lua as malas, via-se chegar o sol depois de um caminho que afinal fora percorrido pela Terra. Deixara-se ficar um pouco embrulhada no lençol e em pensamentos não concretos, vagos. Levantara-se, subira os estores e espreguiçara-se dengosamente sorrindo para ninguém; para a sua consciência que acabara de despertar. Abriu a janela para receber de fora uma brisa que não encontrou. Nada se mexia. Ruído leve de carros ao longe. Histórias que uma qualquer mão, incerta ou acertada, já começara a escrever, naquele dia.

Continua...

(Sem título ainda.)